Ser humano caramujo
É verdade que não podemos carregar tudo na
mochila, mas o fato é que somos meio humanos-caramujos. Já viemos com uma
mala acoplada nas costas, e o peso dela vazia nos é insuportável.
As relações trazem à tona as toxinas, mas são as relações
as pontes para os nutrientes quando recicladas: quando se pode o ciclo inteiro.
Para a travessia da reciclagem é preciso ter coragem para olhar o lixo sem
largar o amor, sem largar a união. Se descosturar das fibras do lixo na
confiança de que você não é ele – apenas o acolheu dentro de si para alguma
aprendizagem.
Fazer a mala da vida, o que fica, o que vai, é uma
tarefa difícil. Nem o mais alto nível de discernimento e desapego pode nos
poupar do desequilíbrio, do farto peso nas costas vez ou outra. Porém, é em vão
o esforço para trancafiar-se a sete chaves, estamos preenchidos, ainda que pelo
medo de ter alguém dentro de si. O medo, a abertura, o amor, o lixo, a loucura,
fica a seu critério, por sua conta e risco. Sua mala, é sua – e ninguém
pode carregar ela por você.
É bem possível que lá pelas tantas a gente realmente se
surpreenda com algo dentro da mala. Algo que temos certeza de não ter permitido
entrar. E o que está lá, que nem se quer nos damos conta? Pois!
Aqui algo importante se faz claro: da mala da vida o
controle passa longe. Não se trata de controlar. Se trata de aceitar, cuidar e
reciclar, na confiança de que se veio a calhar na sua mala, é porque tem algo
aí pra você, se não simplesmente não viria. Sua mala, é sua, e você não está
separado dela. Se o controle passa longe, o acaso mais ainda. Aceitar o que vem,
claramente não quer dizer se isentar da responsabilidade de suas escolhas,
conscientes e inconscientes. Pelo contrário, suas escolhas são suas semeaduras,
e seu sentir a sua melhor pista para que a colheita saia como o desejado, ou
minimamente perto. Apesar dos pesares, ser assim meio mala de Mary Poppins
ainda é um privilégio, especialmente para aqueles que escolheram evitar o
sofrimento sem ter medo de sentir a dor. O privilégio é ser um campo receptivo,
ainda mais quando nos ancoramos na coragem da verdade, da entrega e do desapego
nas relações.
Ser um ser-acervo é ser de todos, e ser todos.
Haja amor para não amargar essa coletividade.
Ser um humano-caramujo é ter a possibilidade de se reconhecer
como a ponte entre o dentro e o fora, é ser aquele que está entre o escolhido e
o indesejado que lhe bate a porta, costurando aprendizagem e reciclagem numa
boa trama. É construir sentido para além da compreensão. É se perceber flecha,
alvo e atirador, sabendo ao mesmo tempo que de fato o curso maior da sua vida
lhe foge ao seu alcance, e esta para além das suas vontades. Haja amor para não
amargar esse construção.
Com os anos aprendemos a usar filtros em nossas
mochilas. Mas inevitavelmente de tempos em tempos teremos que sentar, abrir,
reavaliar, se despir, despedir e largar. Atualizar as verdades, mutantes.
Depois de alguns episódios de encontrar pessoas desastrosamente
emaranhadas na nossa mochila, e de nos encontrarmos igualmente derramados em
malas alheias, repensamos nossa estrutura, estudamos o zipper osmótico, e possivelmente
com alguma sensatez e bastante medo, nos fechamos um pouco. Mas a gente também quer
com verdade e inspiração entrar na mala do outro, construir bolsos e dormir
aquecidos entre o forro e a pele. As vezes até pra ser a alça da mala a gente
quer entrar, apesar de todos os avisos que sabiamente desaconselham o caso.
Enfim o impulso da troca nos toma, por encanto, necessidade ou distração mesmo.
E sobre a parte da “certa sensatez e o bastante medo que nos faz fechar um
pouco”, do que pessoalmente experimentei, traz algumas angústias legítimas, e
possivelmente confortos passageiros.
Hoje ca com minha bagagem acredito que o “filtro” mais
eficiente que conseguimos, é capacidade de ampliar o peito no afeto. Sim, se
entregar. Porque no peito não há meias verdades, e não há verdade que se
esconda quando a entrega é real. No sentir somos simplesmente inteiros. E que a
gente possa ter a coragem de desromantizar a inteireza, porque estar inteiro
pode não ser nada bonitinho. A potencia da inteireza fala justo sobre abarcar o
todo, e isso inclui toda sombra, perfeitamente imperfeitos. Curioso que ao fim –
onde inevitavelmente se espera algo conclusivo - venho falar da entrega como um
bom filtro. Sim, atuar nossa essência amorosa cuida mais da gente e do todo do
que qualquer tentativa de proteger. É como crescer por dentro numa versão não
ego-trip. Como estar bem a vontade com o amor que a gente sente e é, afinal,
isso não pode fazer mal a ninguém. Ufa!
O amor na ponta da agulha, no trato, no tato, filtra
que é uma beleza. Por mais duvidoso que isso seja. Por mais contraditório que
isso possa ser e é.
Pois a entrega a partir da nossa essência amorosa é o
jeito mais implacável de construir o recuo que não é medo, a firmeza que não
agride, o limite que não é egoísmo. E que Deus nos livre do incomensurável
peso do medo, da agressão, do egoísmo. Pras bandas de lá Deus faz a parte dele,
e que a gente faça a nossa com convicção, pois seguir se entregando ao amor ao
abrir nossas malas cheia de rasgos, já é tarefa pra mais de uma tonelada de
determinação e confiança.
Sim, se entregar: a verdade em tempo real, como a
vida, sem garantias e com riscos. É queda livre rapaziada, e o único paraquedas
possível de se acessar é a confiança. Sim, confiar. Amar até o fim - até que o
fim desapareça, pois em se tratando de amor, quem passa longe são os limites. O
fim é apenas uma ilusão necessária enquanto tivermos medo de aceitar que somos
uno com o todo.
O amor é o único peso que eu conheço que se pode
carregar com leveza - só ele mesmo para relativizar a gravidade, e de quebra
delimitar o que entra, e principalmente o que fica em nossas células-acervo,
encosto de caramujo.
Preto no branco é clareza dos corações que se jogam.
O vazio é um abismo ainda maior do que o amor.
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