sexta-feira, 27 de abril de 2012

Ser humano caramujo


 
É verdade, não podemos carregar tudo na mochila,  mas o fato é que somos humanos caramujos. Já viemos com uma mala acoplada nas costas, e o peso dela vazia nos é insuportável.

O amor traz toxinas, mas tem todos os nutrientes necessários quando reciclado, quando se pode o ciclo inteiro.

Fazer a mala da vida, o que fica, o que vai, é uma tarefa muito difícil. Nem o mais alto nível de discernimento e desapego pode nos poupar do desequilíbrio, do farto peso nas costas vez ou outra. Porém é em vão o esforço para trancafiar-se a sete chaves, somos preenchidos, ainda que de medo de ter algo dentro de si.

O medo, a abertura, fica a seu critério, por sua conta e risco. Porém não viemos com manual de instruções, e a mala não tem um botão de evacuação imediata, limpeza profunda, sem vestígios. Além do mais, sabemos que poucas vezes  a figura humana esta legitimamente associada a palavra controle.  Muitas bugigangas vão parar no âmago da mala assim, como que por osmose, sem se quer convite ou autorização. E o que nem se quer percebemos e lá esta?
Apesar do pouco controle e tamanha importância que toda nossa mochila representa para nossa vida inteira, ser assim meio mala da Mary Poppins ainda é um privilégio.
Pois ser um ser-acervo é ser de todos, e ser todos.
Haja amor para não amargar essa coletividade.
É ter a possibilidade de construir sentido em perspectiva. Ser ao longo do tempo também profundidade, ser a própria história, memória ambulante, viva. Haja amor para não amargar esse traço, e dimensão.

Com os anos aprendemos a usar peneiras em nossas mochilas. Mas inevitavelmente de tempos em tempos teremos que sentar, abrir, reavaliar, se despedir, largar.

Depois de nos depararmos com uma(s)  pessoa(s) desastrosamente instalada(s) na nossa mochila como se esta fosse sua casa (quarto, sala, banheiro,cozinha, e quintal), e de nos encontrarmos igualmente derramadas em malas alheias, repensamos nossa estrutura, estudamos o zipper osmótico e provavelmente com alguma sensatez e certo medo nos fechamos um pouco. Mas a gente também quer entrar na mala do outro, construir bolsos, furar o forro. As vezes até pra ser a alça, apesar de todos os avisos que sabiamente desaconselham o caso. Enfim o impulso da troca nos toma, seja por encanto, necessidade ou ainda distração.

Hoje, cá com minha mochila acredito que a peneira mais eficiente que conseguimos é a capacidade de ampliar o peito no afeto. Crescer por dentro numa versão não ego-trip. Como estar bem a vontade com o amor que a gente sente, afinal,  isso não pode fazer mal a ninguém. Ufa! Pois, o amor na ponta da agulha, no trato, no tato: peneira que é uma beleza. Por mais duvidoso que isso seja. Por mais contraditório que isso possa ser, e é.

Pois a entrega da atitude amorosa em cada ato é o jeito mais implacável de delinear o recuo que não é medo, a firmeza que não é agressão, o limite que não é egoísmo. E que Deus nos livre do incomensurável peso do medo, da agressão, do egoísmo. Peneira e vale a segurança vívida de carregar em si a coragem da exigência e da dedicação nas boas relações.

O amor é o único peso que eu conheço que se pode carregar com leveza - só ele mesmo para relativizar a gravidade e de quebra limitar o que entra, ou mais seguramente o que fica em nossas células-acervo, encosto de caramujo.

Preto no branco é clareza dos corações que se jogam. O vazio é um abismo ainda maior do que o amor. 


-- 
Luciana Barros

http://soundcloud.com/luciana-barros/sets



Eu dedico esse texto ao Gael, meu querido  afilhado, que esta começando a fazer a mala da sua vida agora. Que seja iluminada!



2 comentários:

  1. Isso mesmo Lú... Somos humanos caramujos e já viemos com uma mala pesada nas costas.
    Tem gente que vem em vez da mala vem com uma cruz. Eu preferi a mala para poder colocar minha cruz dentro na companhia das tais bogigangas que vamos juntando pelo caminho. Daí a coitada da cruz não fica sozinha e tem com quem trocar, ou quem amar.
    Valorizemos nossas mochilas e cruzes, afinal sem elas não temos blogs para escrever e nem histórias para contar.
    Com muito amor , deixo meus beijos para vc e seu "filho" que acaba de nascer nesta viagem. O BLOG!

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  2. Lu, admiro muito suas palavras e sempre achei que é uma poeta, artista nata!

    A vida nos apresenta fatos pra amadurecermos... e se cristalizarmos sem amor, fica frio, sem sentido, só o negativo. Todas as pessoas que passam pelas nossas vidas nos ensinam algo e que lindo, olharmos pra trás e ver que houve respeito, trocas verdadeiras, mesmo que finitas, onde os caminhos não se cruzam mais...
    Peneirar a mala, rever o que fica e o que sai é rever padrões pré-estabelecidos por nós mesmos e que nem percebemos... dar uma leveza e criar espaços para novas possibilidades.
    Super bj amiga!
    De coração!
    tata

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